16 janeiro 2007

xadrez


Viram-te jogar o xadrez com o dragão.

Mãe, não era eu.

Viram-te... não me interessa. Viram-te e estavas a jogar o xadrez com o dragão.

Mãe, de certeza não era eu.

Estavas. Eras tu. Viram-te numa das janelas da Sociedade e estavas a jogar o xadrez com o dragão.

Isso é mentira, mãe. Palavra que é mentira.

Porque é que teimas? Se te viram...

Viram, nada. Não podiam ter visto.

Não podiam, mas viram. Viram-te a jogar o xadrez com o dragão.

Eu não era, mãe. Não quero saber. Eu não era.

Eras, sim. Eras e vieram-me dizer: olhe, estava a jogar com o dragão. A jogar o xadrez.

Não estava, palavra que não estava. Acredita, mãe, que não estava.

Está bem, acredito. Acredito que não estavas, mas viram-te.

Assim não, mãe. Não estava nem me viram. Não me podiam ter visto.

Pois não te podiam ver, mas viram. Aí é que está. Viram-te numa das janelas da Sociedade a jogar o xadrez com o dragão.

Ó mãe, é mentira. Já disse que é mentira. Eu não estive na Sociedade.

Nem estiveste a jogar o xadrez com o dragão?

Pois claro que não estive. Não estive na Sociedade nem estive a jogar o xadrez com o dragão. É tudo mentira, mãe.

Mentira, só se for a tua, porque se te viram na Sociedade a jogar o xadrez com o dragão e me vieram dizer é porque estavas.

Mãe, não estava. Não estava. Não estava. Sério que não estava.

O choro. O pressentimento do choro, a corrente interna do choro e o curto-circuito que o interrompe a tempo:

Pronto, não estavas. Se insistes que não estavas é porque não estavas. Viram-te mas foi invenção. Inventaram que te viram foi o que foi. Não se fala mais nisso.

Foi invenção, mãe. Inventaram, mãe. Eu não estava, não estava, palavra, mãe. Não estava.

Mesmo assim, rolando, rolando lá de dentro eis que se despenha em avalanche o choro.


*


Para ir ter à sala do fundo, a dos livros, dos jornais e das pequenas mesas, tem de se passar primeiro por pé do balcão da secretaria, onde nunca está ninguém, e, depois, pela sala dos bilhares adormecidos. Alinhados, junto à parede, os tacos a prumo, simulam frágil guarda de honra. Há, ainda, um corredor sombrio e, a proteger o recato da biblioteca e dos jogos silenciosos, uma cortina verde e antiga. Afastada a cortina, entra-se numa sala de leitura.

Vamos a uma partida?

Vamos.

A pequena mesa estremece e o jogo principia.

Caem as pedras uma a uma. É um cataclismo planeado. As torres em ruína, os cavalos num frémito de morte, a rainha por terra, o rei que renuncia.

Xeque-mate.

Previsto.

Então a penumbra da sala, guardada pelos estores descidos, estala num clamor de luz. Do outro lado da mesa, ele levanta-se, refulgente, as escamas eriçadas, arqueando o dorso, corpo em chamas com asas de vitória. Deslumbrando.

Canta uma sirene sereia no seu peito:

Ganho-te sempre.

Sempre, ecoa, prostrada, a frágil voz criança.

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